quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Um conto repetido


Ontem rasguei mais uma folha do calendário. Foi um dia qualquer – ou noite qualquer, se preferir - precisamente, uma quarta de cinzas, mas poderia ser terça, segunda, domingo ou um tanto faz dia de cinzas. Como resquício do carnaval, havia mais de uma fantasia nos vestindo: eu, alguns amigos e os outros, todos festejando algo que não me pus a saber. Mas havia uma festa: As barracas de jogo, barracas de comida; todos os sexos do mundo; o caixa pegador dos níqueis que eram trocados por algum diurético ou por aluci-nógenos (para estes, havia uma senha especial), havia também pernas, muitas pernas; braços, poucas mãos e algumas cabeças, além do palco. Pois, claro, numa festa de classe média tem de ter um palco para a apresentação de um grande representante da música popular; um compositor solo ou algo do tipo, para descontrair ou, ao menos distrair os convidados. Tudo isso ao final de um dia pra mim reduzido a probabilidades. Na verdade, um emaranhado de alter-nâncias e exclusões - uma vida resumida em ous. Pensei até que poderia resgatar o pouco do meu ânimo naquela festa. Assim, ao chegar lá, alguns dos meus amigos foram para o camarote, eu preferi me deslocar para os extremos do salão, então fui para perto da mesa onde estava o ponche. Apanhei um copo plástico, enchi-o com a bebida e me recostei na parede ao lado, de onde pude observar o que se passava...A música começou a tocar e a pista de dança foi se enchendo lentamente. Percebi que estávamos devagar demais para uma festa. Aquilo estava um pouco estranho: um casal ali, um grupo de amigos aqui, outro acolá... Não foi difícil notar que o lugar, ou melhor, o ambiente onde estávamos era um tanto cordial às relações unilaterais – pelo menos assim o via – como o recanto da marginalidade interacional, o meio propício para a formação de vínculos passageiros entre aqueles que se dispusessem a desfrutar a festa.O meu copo esvaziou, enchi-o e voltei para a parede, enquanto a música tocava. Depois de umas duas ou três canções, a situação começou a mudar.Não demorou muito para o Lúcio - amigo meu da faculdade – chamar-me para a pista onde estavam os outros: Ô, cara! O que faz aí no canto? – Ô, Lúcio, não tô fazendo nada demais! – Pô, então vamos lá pra a danceteria... Pensei em ir, mas meu copo já esvaziara novamente, tive que enchê-lo e só depois disso é que fui. Fiquei ao lado do Lúcio nos primeiros minutos, balançando, num movimento sutil, minhas pernas, mas pareceu-me que ele se sentira incomodado com isso, pois se afastou um pouco de mim. Eu, no meu ritmo, permaneci por ali, tragando goles do meu ponche.O globo de luz girava (e como girava), eu de alguma forma, tinha que encontrar um par pra dançar comigo, ou alguém pra levar a festa adiante. Aproximei-me então, da minha roda de amigos, a fim de curtir a festa com eles; cheguei e cumprimentei todos com um e aí, mas acho que por causa do alto volume da música ninguém me ouviu e portanto, não obtive resposta. Fiquei ali ao lado deles, dentre os quais, o Marcão – vizinho meu de longa data – fui bater um papo com ele, falar sobre algo engraçado que me acontecera há alguns dias, ou iniciar um assunto qualquer pra eu não ficar naquele silêncio: E aí, Marcão? – Fala, vizinho. Tudo bom? – Mais ou menos, velho, você não sabe o que eu fiz ontem...Comecei a contar-lhe sobre meu dia passado, em que havia ocorrido um fato sério comigo; caso de saúde e tal. Pus-me a continuar o relato quando Marcão riu. Não entendi o porquê da gargalhada, dado a seriedade do meu assunto. Depois percebi que aquela risada proveio da conversa dos nossos outros amigos, na qual Marcão prestara mais atenção que na minha. Ao término do riso, ele simplesmente se desculpou para mim e foi lá conversar com os outros. E ficaram ali, conversando entre si, e alguns continuavam a dançar com alguma garota – talvez tenha sido este último fato que os fez se destacarem da roda e terem me deixado.Sem problema! – pensei – e continuei dançando sozinho no meio da pista, com minha dança esdrúxula, cujos passos não ultrapassavam meio metro quadrado. A essa hora a bebida do meu copo já havia se dissipado, fui reabastecê-lo e quando retornei à pista, avistei uma menina. Linda, perfeita. E eu, que pouco desfrutara de relacionamentos, que mal havia experimentado mulheres, vi ali uma oportunidade êxtase para minha festa. Tentei, inicialmente, trocar alguns olhares com ela antes de ousar me aproximar. Nada d’ela me corres-ponder. Cheguei mais perto e a garota esbarrou no meu copo, derrubando todo o ponche em seu vestido. Ela, na excitação da festa, eu acho, sequer percebeu o ocorrido, tampouco me notou, e virou-se, seguindo para a pista, enquanto eu recolhia o copo no chão. Levantei-me com ele vazio na mão, precisava de mais ponche, então me desloquei até aquela mesa (isso, àquela mesma) para repor o líquido. Foi quando, ao olhar para o recipiente, notei que a bebida acabara. Não havia mais ponche. Fiquei trinta e oito segundos em frente à mesa, olhando aquela tigela sem qualquer gota dentro de si.Não havia mais ponche e eu precisava da bebida. Passei mais três segundos olhando a tigela e meu copo vazios, depois virei-me da mesa para a festa. Nesse átimo, a música parou. Assim, de súbito, parou. Eu olhava ao fundo do salão, Lúcio e os outros ainda estavam dançando; em meu redor todos também dançavam, porém eu sequer ouvia a música. Por um instante não entendi aquela cena, tentava acenar um stop para o Lúcio, ele continuava dançando; fazia, com os braços, um gesto de cessar, e todos continuavam dançando. E foi, andando de costas e em círculos pelo salão, que percebi o que era aquilo. Parei; e uma película envolveu minha íris. Uma lágrima única caiu no fundo do meu copo vazio, e aí eu soube: Havia uma festa; em todo momento, havia uma festa; ali, na minha frente, havia uma festa; ali, e somente ali, havia uma festa.Saí do recinto e fui até o porta-luva do meu carro, apanhei a arma que lá estava – um calibre 38 sem porte, licença, mas que estava ali para garantir minha autodefesa, e voltei para o interior do salão. Adentrei, e fui direto para a pista de dança. A música ainda não tocava meus tímpanos e toda angústia tomava meu corpo. O globo de luz parou de girar (não havia festa pra mim); olhava à minha volta (a festa não estava pra mim); olhava o Lúcio e os outros, ainda conversando (a festa não estava pra mim), e nesse momento, a película na minha íris já inundara a maçã do rosto. Então levantei aquela arma à minha cabeça, engatilhei-a e pude prever o cheiro de pólvora que ficaria no ar. Contei até três para o disparo:Um... Dois... Três...e.......................................................................................................................................................................................................Não, não o fiz. Não pude concretizar o ato.Baixei o 38 e, com a arma em uma mão e o copo vazio na outra, pus-me a pensar na razão que me levou àquilo.Suicídio – não valeria a pena. Melhor esperar pelo próximo aniversário. Ademais, alguém poderia tropeçar em mim.
Ixra A. ©2006

Um comentário:

Anônimo disse...

putz.. eu previa o final da história de uma outra maneira...

ficou bem louco...

=)